
Por Viviane França(*)
A história de uma pessoa não se mede apenas pelos desafios que enfrentou, mas pelo lugar que lhe foi concedido – ou negado – ao longo da vida. Há aqueles que sempre tiveram um assento garantido à mesa e aqueles que, mesmo quando bem-vindos, nunca se sentaram de fato. Algumas histórias se repetem, como ecos de um passado que insiste em se perpetuar: mulheres que passaram a vida servindo, sendo gratas pelo pouco, escondendo a dor da humilhação entre os afazeres diários. Mas, e quando essa história encontra um ponto de ruptura? Quando o ciclo se quebra e, pela primeira vez, alguém olha nos olhos dessas mulheres e as enxerga por inteiro?
A vida de Leocádia, ou Léo como carinhosamente a chamamos, é marcada por desafios, força e resiliência. Nascida em São Gonçalo do Abaeté, enfrentou uma infância difícil, começou a trabalhar muito cedo e teve que aprender, na prática, a sobreviver. Mas sua trajetória não é apenas sobre lutas, é também sobre superação, afeto e transformação.
Léo, me conta um pouco da sua história? Sou a décima filha de 13 irmãos por parte de mãe e mais de 20 por parte de pai. Minha infância foi muito difícil. Saí de casa aos sete anos para trabalhar como babá. Minha mãe tinha depressão e nossa situação financeira era complicada, então ela aceitou me deixar ir. Aos 11 anos, perdi meu pai e fui morar com uma irmã, mas sofri muito lá e acabei saindo pouco tempo depois.
Depois, um casal me convidou para trabalhar em Belo Horizonte. Aos 16 anos, me estabeleci de vez. Cuidava das crianças, da casa, ajudava quem vinha do interior. Aprendi muito com tudo o que vivi.
Hoje sou casada e tenho 5 filhos, sendo uma biológica, Izabela (30), engenheira mecânica e quatro do coração, Diego (36), gerente de fazenda, Karina (30) advogada, Isadora (27) advogada e Miguel (27) mecânico.
E os estudos? Foi muito difícil. Fiz supletivo e concluí depois de muitos anos. Eu me dedicava totalmente ao trabalho, queria agradar. Não tinha hora de dormir ou levantar. Minha autoestima era muito baixa, sempre carreguei a sensação de rejeição. Entrei em depressão profunda parei até de falar. Minha filha Izabela me levou para uma psicóloga e acompanhou todo o tratamento… foi muito importante.
Em 2022 conheci você, Viviane, que considero como uma filha. Me enxergou como pessoa, me valorizou, conversou comigo e quis saber de verdade minha história. Com sua ajuda também, consegui ver que posso estar em um lugar mesmo que eu não esteja trabalhando, servindo. Com seu apoio consegui enfim finalizar meus estudos básicos e fazer faculdade! Comecei meu curso de nutrição em 2023, logo após concluir o ensino médio. Sou muito grata a Deus por ter te colocado na minha vida!
Fico emocionada com suas palavras Leozinha! Admiro sua força e coragem de enfrentar esse processo de ruptura, demonstrando a potência da mulher e suas infinitas possibilidades.
Você passou por um momento muito difícil com sua saúde… me conta como foi descobrir e superar! Descobri um câncer raro no peritônio em 2008. O tratamento durou cinco anos. Passei por cirurgias, radioterapia, tive hemorragias graves e anemia severa. Muitas vezes quis desistir, mas olhava para minha filha e encontrava forças. Hoje faço check-ups regulares e sigo bem. Poucas pessoas sabiam que tive um câncer, pois não gostava de relembrar dessa parte da minha vida, mas hoje olho para trás e me sinto uma vencedora! Agora quero viver por mim, me valorizar e reconhecer minhas conquistas!
Qual recado você deixa para as mulheres que se sentem invisibilizadas? Não desista, mesmo quando parecer que ninguém te enxerga. Todas temos algo especial. Ocupe espaços, se imponha e acredite no seu valor. Chegue com coragem – e, antes de tudo, enxergue a si mesma!
O que faz com que uma história deixe de ser apenas um relato de luta e se torne um ato de liberdade? Talvez seja o momento em que uma mulher, que por tanto tempo existiu apenas para servir, se permite desejar algo para si mesma, quando percebe que tem direito a um espaço que não seja apenas o da obrigação, mas o da escolha. Léo é dessas pessoas que transformam tudo ao seu redor, não apenas com sua comida, mas com sua história e sua presença. Por muito tempo, acreditou que sua única função era servir. Hoje, entende que pode ocupar qualquer espaço. Sua jornada é a prova de que reconhecimento e respeito não são favores, mas direitos. E a Léo, com toda a sua força e doçura, segue conquistando cada um deles.
*VIVIANE FRANÇA é Mulher, Advogada, Pesquisadora, Mestre em Direito Público, Especialista em Ciências Penais, autora do livro Democracia Participativa e Planejamento Estatal: o exemplo do plano plurianual no município de Contagem. Secretária de Defesa Social de Contagem/MG, Sócia do França e Grossi Advogados.