Por Viviane França(*)
Reconstruindo Sorrisos e Vidas
Neste mês de abril foi sancionada a Lei nº15.116, que institui o Programa de Reconstrução Dentária para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica, garantindo acesso a tratamento odontológico especializado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Se, por um lado, esta é uma importante conquista, por outro, é também um triste e necessário alerta para nossa sociedade. Afinal, chegamos a um nível em que precisamos remediar, institucionalmente, as consequências brutais da violência contra as mulheres.
A existência dessa lei escancara uma realidade alarmante: as agressões domésticas são tão recorrentes e severas que é preciso criar políticas públicas específicas para lidar com as sequelas físicas e emocionais causadas por esses atos. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2024, mais de 1,2 milhão de mulheres foram vítimas de violência doméstica no país. Em mais de 60% desses casos, os ferimentos concentram-se na face, atingindo diretamente a autoestima e dignidade dessas mulheres.
A violência contra a mulher não deixa apenas cicatrizes físicas visíveis. Suas marcas vão além, afetando profundamente a saúde emocional, psicológica e social das vítimas. Perder dentes, ter o rosto deformado ou sofrer lesões que afetam diretamente o sorriso gera um impacto devastador na autoestima feminina, minando a confiança e dificultando ainda mais a recuperação emocional e social dessas mulheres. Muitas deixam de sorrir, evitam interações sociais, escondem-se por vergonha e medo de julgamentos, reforçando um isolamento social imposto pelo próprio agressor.
A lei chega como um suporte essencial para essas mulheres reconstruírem não só suas arcadas dentárias, mas também suas vidas. O tratamento odontológico pelo SUS incluirá reconstruções, próteses, tratamentos estéticos e ortodônticos, representando uma oportunidade concreta de restaurar não apenas a saúde bucal, mas principalmente a autoestima e a dignidade perdidas com as agressões. Ao recuperar seu sorriso, essas mulheres recebem também uma importante ferramenta para retomarem o controle de suas vidas, resgatando a capacidade de interagir plenamente na sociedade.
Mas é preciso que fique claro que esta legislação, por mais valiosa que seja, trata as consequências, não a causa. É urgente que a sociedade reflita sobre o motivo de termos chegado ao ponto de precisar institucionalizar a reconstrução dos rostos e sorrisos destruídos pela violência doméstica. Precisamos questionar profundamente as estruturas sociais que ainda perpetuam comportamentos violentos e machistas, exigindo mudanças reais que vão muito além do reparo físico das vítimas.
Em Contagem, temos concentrado esforços na ampliação da rede de proteção à mulher. No mês de março, a Prefeita Marília anunciou a criação da Secretaria das Mulheres e Juventudes, importante passo no fortalecimento das políticas públicas para a mulher. O Programa Elo por Elas segue essa diretriz e, atualmente, é levado às igrejas evangélicas, locais onde identificamos altos índices de violência de gênero. Devido à capilaridade dessas instituições religiosas e à sua capacidade de alcançar diretamente as mulheres, o programa representa um braço fundamental na luta contra a violência.
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, reforça que a implementação dessa política é parte do compromisso do governo em garantir dignidade e segurança às vítimas. Contudo, é igualmente importante reconhecer que enfrentar a violência doméstica requer esforço coletivo, mobilização social, conscientização e educação, para que não tenhamos que continuar remediando situações absurdas e desumanas como estas.
Essa nova lei deve servir como um poderoso lembrete diário para que nossa sociedade não normalize a violência contra as mulheres. É essencial mantermos aceso o debate sobre a responsabilidade coletiva que temos em romper esse ciclo perverso de agressões. Assim, quem sabe, no futuro, não precisaremos mais de leis para reconstruir o que jamais deveria ter sido destruído.
*VIVIANE FRANÇA é Mulher, Advogada, Pesquisadora, Mestre em Direito Público, Especialista em Ciências Penais, autora do livro Democracia Participativa e Planejamento Estatal: o exemplo do plano plurianual no município de Contagem. Secretária de Defesa Social de Contagem/MG, Sócia do França e Grossi Advogados.